Antes de entrar
no tema propriamente dito, quero deixar três notas prévias, que devo ao
leitor. A primeira, para dizer que, a pedido da revista internacional
Concilium, escrevi, de modo mais organizado, um texto sobre Fátima, a
publicar no mês de Junho. A segunda, mais importante, para esclarecer
que fui ordenado padre em Fátima pelo cardeal Cerejeira e que, sempre
que lá vou para fazer conferências, passo pela Capelinha das Aparições e
ali rezo como tantos outros. Depois, à pergunta se vou a Fátima por
causa da vinda do Papa respondo que não, porque não gosto de confusões e
penso que os responsáveis da Igreja deveriam prevenir as pessoas, pois
correm o risco de uma imensa desilusão, já que muitas dificilmente verão
o Papa. Prestado este preâmbulo, o tema.
1. Deve ficar claro, desde o princípio, que Fátima não é dogma de fé.
Que é que isto significa? Que se pode ser bom católico e não acreditar
em Fátima. Fátima não faz parte do Credo. Outro esclarecimento mais
urgente ainda: Fátima não ocupa nem pode ocupar o centro do
cristianismo, o centro é Jesus de Nazaré, confessado como o Cristo,
portanto, Jesus Cristo, e o Deus de Jesus e as pessoas, todas.
Aí está a razão por que, como disse a João Céu e Silva para o seu belo
livro sobre Fátima, Fátima. A Profecia Que Assusta o Vaticano, eu trouxe
a Portugal grandes teólogos, para congressos e colóquios, e não
manifestaram interesse em ir a Fátima. De facto, Fátima não é
propriamente uma questão teológica, é sobretudo uma questão de
religiosidade popular. De imenso significado e que deve ser respeitada,
sem dúvida alguma.
2. Para surpresa de
alguns, confesso que não me custa admitir que as três crianças, os
pastorinhos, tenham feito uma verdadeira experiência religiosa em
Fátima.
Qualquer pessoa minimamente
atenta, quer queira quer não, acaba por perceber que há um mistério no
mundo. Fernando Pessoa dizia: olha para o lado e o mistério está lá
(cito de cor), mas eu digo mais: ele está ao lado, em cima, em baixo,
dentro, fora, em toda a parte. E todos somos confrontados com esse
enigma e mistério e perguntamos: o que é isto?, qual é o fundamento de
tudo?, qual é o sentido da existência?, para quê tudo? Crente é aquele,
aquela, que se entrega confiadamente ao Mistério, ao Sagrado, esperando
dele sentido, sentido último, salvação. Escusado será dizer que essa
experiência e essa resposta confiada de fé surgem sempre interpretadas
num determinado contexto existencial, pessoal, social, histórico, no
quadro de pressupostos e expectativas, e na e pela sua mediação também.
3.
As crianças também podem fazer uma experiência religiosa. E isso,
repito, pode ter acontecido também em Fátima com aquelas crianças, os
três pastorinhos. De facto, não consta que tenham sido pagas para dizer
que viram Nossa Senhora; pelo contrário, até sofreram bastante. A
própria Igreja, no começo, pôs muitas reticências.
Mas,
acrescento, foi uma experiência religiosa, evidentemente, à maneira de
crianças e no contexto histórico da altura: havia perseguição religiosa
da Igreja por parte da Primeira República, estava-se em guerra (as
crianças devem ter ouvido falar sobre a I Guerra Mundial e de como os
soldados partiam para a guerra), e vivia-se no enquadramento religioso
da época, que implicava as chamadas missões populares, com pregadores
"missionários" que vinham de fora e, do alto dos púlpitos, aterrorizavam
os fiéis com sermões de temor de Deus e terror do inferno. As crianças
ouviam estas coisas na igreja e em casa.
Assim,
tratou-se de uma experiência religiosa à maneira de crianças e segundo
esquemas e uma imagética hermenêutico-interpretativa situada no seu
contexto. Não se pode esquecer que a experiência religiosa se dá sempre
dentro de uma interpretação, de tal modo que há experiências religiosas
melhores e piores ou menos boas. A daquelas crianças não foi das
melhores, pois pode-se, por exemplo, perguntar: que mãe mostraria o
inferno a crianças de 10, 9 e 7 anos? Os pastorinhos ficaram marcados
negativamente e, de algum modo, com a vida tolhida. Ao mesmo tempo, e
isso é admirável, tiveram uma imensa generosidade face à situação que
viviam.
Acrescente-se que aquele núcleo
de experiência foi sendo submetido a arranjos e rearranjos ao longo do
tempo, segundo novos esquemas interpretativos, no contexto de novas
situações históricas e novos desenvolvimentos.
4. Perguntam-me: e eles viram mesmo Nossa Senhora? Maria, a mãe de Jesus, apareceu mesmo?
Aqui, é decisivo fazer uma distinção essencial. Entre aparições e
visões. Uma aparição é objectiva, como, quando, por exemplo, estamos a
conversar com uma pessoa e chega uma outra pessoa: os dois vemos a
terceira pessoa que chega; se estivéssemos quatro ou cinco pessoas,
seríamos quatro ou cinco a ver e a constatar a chegada objectiva desta
outra pessoa. Evidentemente, não foi isso que aconteceu em Fátima e,
neste sentido, é claro que Nossa Senhora não apareceu em Fátima aos
pastorinhos. Se fosse uma aparição, todos os presentes veriam e
constatariam a sua presença, o que não aconteceu nem podia acontecer,
pois Maria não tem um corpo físico que possa mostrar-se empiricamente.
Tudo
o que é espiritual é da ordem espiritual. Por exemplo, na Anunciação,
não apareceu empírico-objectivamente nenhum anjo a falar com Maria. O
que ela teve foi uma experiência místico-religiosa interior. Isso é uma
visão, no sentido técnico da palavra: uma percepção interior. As grandes
experiências são interiores e vão para lá do empírico. Afinal, a
objectividade empírica não detém o monopólio de toda a realidade, da
realidade mais verdadeira.
Padre e professor de Filosofia